quarta-feira, 19 de maio de 2010

E o que você diria:

Hoje quando acordei ela estava no fim do corredor. Tocara a campainha e agora olhava para os lados, certamente pensando se daria tempo de fugir. Derrubei um vaso enquanto m'esgueirava e quando voltei meus olhos seu nervosismo havia sumido: e ela me encarava, firme.
Ela nunca foi do tipo que encara. Estava bancando a séria, meio sem conseguir. - sim, ela é do tipo que sorri, acanhada, e desvia logo o olhar.
Eu já sabia do que se tratava, era uma promessa antiga. Largou a mochila no sofá e sem se virar para mim foi escolher um disco na prateleira. Agíamos como se aquela visita de improviso fosse muito cotidiana, e lhe ofereci um café. Acenou com a cabeça que sim e puxou para si um jazz mais ou menos culto. Ri da sua expressão confusa ao constatar que a contracapa era toda em francês. Finalmente olhou para mim, e talvez com alguma irritação, pois mal levantou o rosto.
Ela mudou. Mas estava bonita. Tinha os cabelos curtos e soltos de sempre e usava um vestido, o que também não era surpresa. Olhei para ela com ternura e comentei duas ou três coisas sobre assuntos quaisquer. Assuntos nossos. Ela começara a se soltar. Falava da bahia como se fosse o último lugar da terra, nos confins da terra - o melhor lugar da terra. Contava histórias com gestos rápidos, e disse que se apaixonara na bahia, se apaixonara em muitos lugares, como se fosse me enciumar. E quando contei do meu ciúme, não acreditou. Ela não acredita em nada do que digo.
Jogamos mais uma conversa boba, até que perguntei - o que fazia ali. Sem dizer uma palavra, ela se virou de costas para mim e voltou a cabeça por cima do ombro. Abri o zíper de seu vestido com movimentos teatrais.
Nosso sexo para ela parecia uma questão de honra. Eu havia lhe prometido o mundo e foi folia dos meus olhos, ela me disse. E acusou minhas serenatas falsas, meus modos e todas as minhas mentiras. E foi quando percebi a menina que ainda estava lá: ela veio para se vingar, mas não conseguiu. Deitado na cama, pude ver que se arrependia. - eu sei, ela é doce demais para a vingança.
Ainda que retorcida em meio à roupa de cama, mantinha a postura e a expressão séria de uma deusa nórdica. Levantou-se e colocou meu casado de veludo ainda num dia tão quente, porque apanhar a roupa do chão significaria ir embora.
Ensaiei um cochilo, mas a sua demora me incomodou. Encostado na porta do quarto sem que ela me percebesse: bebia mais café e fumava um cigarro apoiada na janela, recitando uma música em silêncio. Quando me viu, fez menção de apagar o cigarro e não a impedi.
Precisava que fosse embora, mas fiquei com pena. É tão nova e tem olhos tão negros. Do tipo que chora sem motivos. Ela é um pouco sem-motivos. E um tanto desequilibrada também.
Disse que me casaria com ela. Não me respondeu. Bebeu bruscamente o último gole de café, como se fosse uma dose de qualquer coisa. Passou reto por mim e se abaixou para catar as coisas do chão. Ela tem uma pinta nova, pensei. E respira de um jeito que é só dela.
Se despediu com um beijo seco e saiu a passos descompassados, como se tivesse uma esperança vaga de que eu a chamasse de volta.
Não chamei.
Ela não viria, de qualquer forma.

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