segunda-feira, 31 de maio de 2010

(de certas violências)

Eu me orgulho dos hematomas de sexo, tal como cicatrizes de guerra. E das pernas doloridas, da pele lenhada, dos cabelos mal-feitos; as borras de batom.
Eu, aprumada diante da cama quebrada, onde arfa seu peito cansado, seu corpo caído, derrotado. Seu corpo é um território conquistado.
Eu, de pé, majestosa. Eu, forte com a certeza da vitória. Como um general, temeroso por desempenho, ansioso por mérito. Um general hipócrita, recém-tornado pacifista, que tenta ganhar seu público com todo tipo de agrado - Porque sabe que, se der sorte, certamente haverá uma insurreição.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

você não entende nada.

Quando eu te ligo perguntando onde você está, não é pelo poder de te censurar, não é porque suspeito de qualquer coisa. Eu quero saber se está nas redondezas, porque quero trepar com você.
Quando eu te ligo e quero saber o que está fazendo, não é porque sou carente e sinto saudades ou mesmo porque acreditaria na sua resposta. É porque, se você estiver livre, seria legal trepar com você.
Quanto eu pergunto se está acompanhado, de forma alguma estou cobrando sua fidelidade, ou achando que me deve alguma fidelidade ou ligando para alguma dessas coisas. É simplesmente porque, se não estiver comendo outra pessoa, eu gostaria de trepar com você.
Quando você é escroto comigo, eu não me importo, não vou deixar de ligar. Não quero jogar com você, e nem mesmo te conquistar. O que eu quero mesmo é trepar com você.

- e quando você me pergunta o que eu quero que você faça, eu não respondo, mas esse é um pudor puramente semântico.

diálogo # 1

- prova esse sanduíche.
- não quero, 'brigada.
- tem queijo branco.
- 'brigada. esqueci o que estava dizendo.
- não tem problema; sério, prova o sanduíche.
- nossa, é bom.
- gostou?
- sim, bom mesmo. que mais você colocou?
- esse sanduíche tem alguma coisa... perfeita.
- acho que sei do que está falando.
- sabe? é como - uma verdade. o que acha?
- universal.
- perdão?
- universal. uma verdade... não?
- sim, sim, ótimo. eu estava mesmo procurando uma dessas.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

E seu olhar foi de um divertimento confuso. Não consegui sorrir, porque ofegava. Porque suava. E m'escondia atrás da vergonha que de súbito queimou minha pele. Ele me interrogava.
- me traz um postal? -
E ele riu, sem acreditar no que ouvia. Isso porque corri até lá. Corri de pés descalços, a areia lenhando meus tornozelos, tudo. Nove quilômetros. Corri porque amava. Não a ele ou o seu silêncio; eu amava o contrário de mim, e odiava meus lamentos. Corri três praias, me perdi no mato, perguntei por ele com a respiração forte. E o encontrei numa mesa de bar, sorrindo sua despedida com uma Brahma gelada nas mãos.
Com os lábios trêmulos e a voz enrouquecida - eu não precisei dizer nada. Ele me segredou o passado do silêncio que o envolvia, feito confessasse seus crimes, um assassinato. Me contou que fugia. Vai virar o mundo, vai voltar para a Holanda. Eu corri, e também estava fugindo. Do medo, do esquecimento e de alguma idéia de destino.
Por isso - eu deitava a cabeça nas mãos, fugindo também do seu olhar de céu sem gravidade. Ele não entenderia, como me deixa aflita a idéia de ver uma pessoa pela última vez.
Que eu não posso me apaixonar por qualquer um, ele disse, que os homens têm muito medo. Muito medo de tudo. E eu disse a ele que não importava. Me apaixonar por ele foi a mentira mais sincera que já contei para mim.
Ele partiu no barco. Me abraçou forte e eu enterrei meu rosto em seu corpo, sem nem querer respirar, sem esperar mais nada do mundo.
O barco saiu de longe e ele olhou para o mar. Ele preferiu o mar. Eu me despi de qualquer ressentimento e preferi também.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

E o que você diria:

Hoje quando acordei ela estava no fim do corredor. Tocara a campainha e agora olhava para os lados, certamente pensando se daria tempo de fugir. Derrubei um vaso enquanto m'esgueirava e quando voltei meus olhos seu nervosismo havia sumido: e ela me encarava, firme.
Ela nunca foi do tipo que encara. Estava bancando a séria, meio sem conseguir. - sim, ela é do tipo que sorri, acanhada, e desvia logo o olhar.
Eu já sabia do que se tratava, era uma promessa antiga. Largou a mochila no sofá e sem se virar para mim foi escolher um disco na prateleira. Agíamos como se aquela visita de improviso fosse muito cotidiana, e lhe ofereci um café. Acenou com a cabeça que sim e puxou para si um jazz mais ou menos culto. Ri da sua expressão confusa ao constatar que a contracapa era toda em francês. Finalmente olhou para mim, e talvez com alguma irritação, pois mal levantou o rosto.
Ela mudou. Mas estava bonita. Tinha os cabelos curtos e soltos de sempre e usava um vestido, o que também não era surpresa. Olhei para ela com ternura e comentei duas ou três coisas sobre assuntos quaisquer. Assuntos nossos. Ela começara a se soltar. Falava da bahia como se fosse o último lugar da terra, nos confins da terra - o melhor lugar da terra. Contava histórias com gestos rápidos, e disse que se apaixonara na bahia, se apaixonara em muitos lugares, como se fosse me enciumar. E quando contei do meu ciúme, não acreditou. Ela não acredita em nada do que digo.
Jogamos mais uma conversa boba, até que perguntei - o que fazia ali. Sem dizer uma palavra, ela se virou de costas para mim e voltou a cabeça por cima do ombro. Abri o zíper de seu vestido com movimentos teatrais.
Nosso sexo para ela parecia uma questão de honra. Eu havia lhe prometido o mundo e foi folia dos meus olhos, ela me disse. E acusou minhas serenatas falsas, meus modos e todas as minhas mentiras. E foi quando percebi a menina que ainda estava lá: ela veio para se vingar, mas não conseguiu. Deitado na cama, pude ver que se arrependia. - eu sei, ela é doce demais para a vingança.
Ainda que retorcida em meio à roupa de cama, mantinha a postura e a expressão séria de uma deusa nórdica. Levantou-se e colocou meu casado de veludo ainda num dia tão quente, porque apanhar a roupa do chão significaria ir embora.
Ensaiei um cochilo, mas a sua demora me incomodou. Encostado na porta do quarto sem que ela me percebesse: bebia mais café e fumava um cigarro apoiada na janela, recitando uma música em silêncio. Quando me viu, fez menção de apagar o cigarro e não a impedi.
Precisava que fosse embora, mas fiquei com pena. É tão nova e tem olhos tão negros. Do tipo que chora sem motivos. Ela é um pouco sem-motivos. E um tanto desequilibrada também.
Disse que me casaria com ela. Não me respondeu. Bebeu bruscamente o último gole de café, como se fosse uma dose de qualquer coisa. Passou reto por mim e se abaixou para catar as coisas do chão. Ela tem uma pinta nova, pensei. E respira de um jeito que é só dela.
Se despediu com um beijo seco e saiu a passos descompassados, como se tivesse uma esperança vaga de que eu a chamasse de volta.
Não chamei.
Ela não viria, de qualquer forma.
Eu passei suas camisas, estão dobradas em cima da cama. Não se esqueça que aquele seu terno azul se lava a seco, que eu estou indo embora.
Isso porque você saiu há alguns minutos para comprar pão e seu olhar com as coisas era o mesmo que o seu olhar comigo. E fiquei pensando na varanda, sentindo que de manhã o ar já acorda viciado. Pensei, por algum motivo qualquer, que não iria fazer seu café porque tinha certeza de que o pão que você traria seria recheado das coisas que só você gosta.
Eu estou indo embora porque me cansei do pão, do recheio, de você e até mesmo da nossa roupa de cama.
Sentei no sofá e tentei me dissuadir de pensar, tentei ler uma revista, mas seus olhos de piedade não me saíam da cabeça. É que você me olha como se eu fosse doente, como se a minha desordem eu merecesse sozinha.
Me doeu a primeira vez que você me olhou assim, porque aí eu soube: que eu era na verdade uma lacuna. E que um pouco da piedade nos seus olhos era você olhando para dentro. Eu sei, você me acolheu porque tinha as tardes livres. Você me aceitou porque queria um conforto, e também porque que eu era algo como espontânea. Algo que ama, e não se apega - era isso?
Você me perguntou um dia se eu me acostumaria com a sua vida longe de mim, embora eu no fundo soubesse que você não suportaria o vislumbre da minha vida perdurar até depois da sua.
Que eu acordava com o telefone tocando. Você então falava com voz de madrugada. Falava das mulheres que não eram eu. Eu adormecia.
E como você gosta e brinca de achar que sou livre e desprendida de coisas materiais, como se isso fosse um capricho, vou hoje sair de casa só com a roupa do corpo. Depois volto, para pegar minhas coisas, porque quero sair antes mesmo de você chegar. Não porque eu tenha medo de você, ou porque o cheiro morno da padaria irá me desarmar. É que você, às vezes, quando estamos atrasados, sai da casa antes de mim, sem me esperar, só porque fui escovar os dentes.
Quero que você me procure pelos corredores assim como faço nessas ocasiões. E é tão triste, porque enquanto te procuro, tudo vai desmontando e eu vou logo sabendo: você faz isso que é para as pessoas não pensarem que a gente se atrasa porque a gente se ama, mas para mostrar a elas que sou uma desencaminhada e não tomo jeito e adoro deixá-las esperando.
Eu dobrei suas camisas não como um último ato de submissão, mas porque não quero que você veja o caos e se lembre de mim (é que camisas jogadas são para você o caos). Eu quero que você veja a ironia que repousa sobre um quarto arrumado.